quarta-feira, 29 de setembro de 2010

* * *

Acabará o Verão. Começará Setembro. Abrirá
a caça aos patos, às galinholas. «Ah, como estás
velho» dir-te-á uma, e tu engatilharás a de dois canos,
não para levantar uma rola, mas para recobrar ânimo.
E as narinas fremem com os pêssegos secos que vendem
na rua. Mas, fora isto, muda tão rápido o mundo,
como se tivesse adoptado em dado momento
as manias extravagantes dum estrangeiro moreno.

Nisto, o Outuno, claro, não é tido nem achado. Nem a dor
do rosto alterado como o da fera que investe contra o caçador,
mas esta sensação de pincel pousado ao lado duma pintura
a que falta príncipio e fim, caixilho e estrutura.
Para não falar do museu, para não falar do gancho.
E o comboio passa ao longe na planície apitando,
embora, vendo bem, não veja visível o fumo.
Mas, do ponto de vista da paisagem, obrigatório é o movimento.

Isto aplica-se ao Outuno, a todos os tempos,
a quando deixas de fumar e também quando
as árvores parecem carris que rejeitaram os rodeios
e enferrujam no desvio para o alto do outeiro.
E não tens na garganta uma bola, mas um ouriço inteiro,
pois já não podes apreciar as linhas dum cargueiro
que ao largo passa, e o perfil dum aeroplano,
desprovido de auréola, nas alturas parece estranho.

A velocidade é só isto. A amiga tinha razão - quem diria?
Um amigo romano que acordasse agora que reconheceria?
Uma pilha de lenha, a textura duma nuvem, os pombos nas alturas,
a água parada, qualquer coisa na arquitectura,
mas nem uma cara. Ainda há quem passe a fronteira
de vez em quando, mas, a uma segunda vida sem direito,
regressa a casa a correr, de terror o olhar desfeito.
E o lenço, do adeus não refeito,

agita-se e vibra ainda ao vento. Outros, cuja sorte foi amarem
qualquer coisa mais do que a vida, sempre souberam
que a segunda vida é, afinal, a velhice, e deixaram-se
ficar ao sol, brancos como o mármore, nunca escurecem.
E, sem desprezarem os prazeres da história, olham fixamente
um PONTO DISTANTE. Pois que, quando mais os pontos forem,
mais manchas terão os OVOS - jogamos aqui ao esconde-esconde -
da codorniz, da galinhola e da perdiz que se levanta não sei onde.


Josif Brodskii in «Paisagem com Inundação» edição bilingue, Tradução de Carlos Leite, Cotovia

(Primeia leitura feita a 29-09-10)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Gélidos Ossos

«O mundo não acaba no frio dos teus ossos»
Rosa Alice Branco


Frio tempo dos teus ossos
onde recomeçar é ter
fé no futuro desconhecido
onde os cisnes deixarão de
cantar a tua passagem.

marmóreas memórias de azul
cobalto.

O frio gelou, a fé quebrou
e pelo caminho ficaram os ossos
do meu cansaço.
13/04/10

Cristo da Visão de Esequiel C. 1130. Convento de FrauenWörth. Pintura Mural

terça-feira, 8 de junho de 2010

À memória de Miguel-Manso

nunca quis ser claro mas declarou, evitou
ser escuso mas encobriu

o atributo colocou quase sempre depois
do nome (assim: um perfume de rosas lentas
insistiu no silêncio da casa) mas

meu deus meu deus a sua obscuridade
era afinal curto-circuito


de Miguel-Manso in «Santo Subito» 2010.

Ao leitor

o meu único desejo, oh Homem, é ter contigo afinidades!
sejas tu negro, acrobata, ou repouses ainda no fundo seio maternal,
quer o teu canto de virgem se ouça pelo pátio, ou manobres a tua jangada no brilho das trindades,
sejas tu soldado ou aviador pleno de resistência e de ânimo vital.

Trazias também uma espingarda com banda verde a tiracolo, quando eras criança?
ao disparar, saía do cano a rolha presa, sem perigo.
Homem, meu semelhante, quando eu canto a lembrança,
não me resistas, vem desfazer-te em lágrimas comigo!

Porque eu passei por todos os destinos. E sei apreciar
O que sente a solitária harpista na banda musical,
O que sente a tímida governanta em estranho círculo familiar,
O que sente a debutante, tremendo ante a caixa do ponto teatral!

Eu vivi na floresta, fui funcionário do Estado,
servi fregueses impacientes, andei curvado sobre livros de caixa,
estive como fogueiro em frente de caldeiras, de rosto intensamente incendiado
e, quando moço de fretes, comi restos de cozinha, e o que mais se acha.

Por isso, pertenço-te, e a todos os demais!
Peço-te que não tentes insistir!
Oh, quem dera, Irmão, que eu pudesse cair
Um dia nos teus braços fraternais!

de Franz Werfel. Tradução de João Barrento in «A Alma e o Caos 100 poemas expressionistas», Relógio d'água.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Praia do Caju

Escuta:
O que passou passou
E não há força
Capaz de mudar isto.

Nesta tarde de férias, disponível, podes,
Se quiseres, relembrar.
Mas nada acenderá de novo
O lume
Que na carne das horas se perdeu.

Ah, se perdeu!
Nas águas da piscina se perdeu
Sob as folhas da tarde
Nas vozes conversando na varanda
No riso de Marília no vermelho
Guarda-sol esquecido na calçada.

O que passou passou e, muito embora,
Voltas às velhas ruas à procura.
Aqui estão as casa, a amarela,
A branca, a de azulejo, e o sol
Que nelas bate é o mesmo
Sol
Que o universo não mudou nestes vinte anos.

Caminhas no passado e no presente.
Aquela porta, o batente de pedra,
O cimento da calçada, até a falha do cimento. Não sabes já
Se lembras, se descobres.
E com surpresa vês o poste, o muro,
A esquina, o gato na janela,
Em soluços quase te perguntas
Onde está o menino
Igual àquele que cruza a rua agora,
Franzino assim, moreno assim.
Se tudo continua, a porta
A calçada a platibanda,
Onde está o menino que também
Aqui esteve? Aqui nesta calçada
Se sentou?

E chegas à amurada. O sol é quente
Como era, a esta hora. Lá embaixo
A lama fede igual, a poça de água negra
A mesma água o mesmo
Urubu pousado ao lado a mesma
Lata velha que enferruja.
Entre dois braços d’água
Esplende a croa do Anil. E na intensa
Claridade, como sombra,
Surge o menino
Correndo sobre a areia. É ele, sim,
Gritas teu nome: «Zeca,
Zeca!»
Mas a distância é vasta
Tão vasta que nenhuma voz alcança.

O que passou passou.
Jamais acenderás de novo
O lume
Do tempo que apagou.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

A árvore-Peito

a Louise

secas são as raízes que do peito
brotam a autêntica carnação
do mundo nesse teu azul celeste.
o peito feito árvore do sangue intenso
o desejo revelado eras tu sob o véu
infantil da recordação.



Louise Bourgeois. «Ainu Tree» 2000

terça-feira, 13 de abril de 2010

Memória Hermética de Retrovanguarda

a Kurt Schwitters



MEMÓRIA MEMOR ME
MENTE ENTE ECO DE
CINGINDO INDO MEMOR DI AL
DE MEMORANDO ANDO MEMORÂNDUM
SEM IDO, SEM TI, SEM SENTIDO.
MEMÓRIA INSCRITA ITA DO I.

***

É urgente o sentido!
Quebrar, colar, perfurar
Rios, memórias, histórias:
Primeiro estilhaçar palavras de vidro
Sem sentido, sem imagem
Numa névoa semi-escura, semi-opaca.
Colar, depois, o tu e o eu a palavras livres
E pela noite dentro perfurar com ou sem
Ido o tu no eu, o eu no vós, o vós no eu
Criando histórias que tatuem o tempo.

***

Veio o festejo
E o escorregar na inevitabilidade do adeus
A lágrima do Tempo.


(Publicado na Revista Trama Nº1)

Citação #3

«O universo da arte deixou de ser um «antimundo», pois participa plenamente nas leis do sistema mediático e económico»

Gilles Lipovetsky e Jean Serroy «A cultura-Mundo - Resposta a uma sociedade desorientada», janeiro 2010.

Thomas Adès

Novas Obras de Adès, Cd 2010:

-Tevot (2007).
-Violin Concerto «Concentric Paths» (2005)
-Three Studies from Couperin (2006)
-Overture,Waltz and Finale from «Powder Her Face» [1ºOpera de Adès (1995)] (2007)



uma real inspiração quando o sol adormece!

No país no país no país ...

no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno

e no país no país no país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escrea com ela, só até à ilharga,
a grande história do amor só até ao pescoço

e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora aí está -
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)
diz que grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem por motivos de obras.
É relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato.


de Mario Cesariny in «Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano» (1952)

``Amen´´

Corrupção escorrendo pelo quarto podre;
Sombras no papel amarelo da parede; em espelhos escuros curva-se
a tristeza ebúrnea das nossas mãos.



Pérolas pardas correm pelos dedos finados,
no silêncio
abrem-se os olhos azuis de papoila de um anjo.



Azul é também o anoitecer;
a hora da nossa morte, a sombra de Azrael.
que escreve um jardinzinho pardo.


de Georg Trakl in «Poemas» versão de Paulo Quintela


Poema de Retrete



Não te esforces, cabrão!
Roupa langonha.
Tony Harrison in «V»



De porta fechada para ocultar a
Minha face
Enquanto ouço ao longe os grilos
Cago-me de consciência limpa.

De tripa limpa em sintonia
Com a minha falta de memória
Lá fui a comissões e inquéritos:
Posso ou não escrever «cagar» neste poema?

Paleio e Paleio e mais
Paleio e ninguém me diz
«Pode» ou «Não pode»
Em retretes digo «cago-me para vocês»
Ocultado está o meu rosto
Em salas em U limito-me a soletrar «WC»
Tenho o rosto a descoberto!

…um momento…

Aquele não é o primeiro-ministro de
Caralho na mão a foder os
Mentirosos de consicência limpa?

Ah corruptos, cus cagados
Ratazanas da crise!
Ah se eu fosse a crise
Fodilha-vos a todos meus cabrões
De Consciência limpa!

…Nova mensagem de
…Satanás22@hotmail.com:

«Não ouvi nada, não vi nada,
Não sei de nada, não disse nada,
Não senti nada, não tenho consciência
De Nada. Nada. Falas de quê?
P.s- convidados a proteger XD!
Nada X 7 hemm! »

A merda é tanta nas retretes do Poder
Que nos cega os olhos!






quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Coisas Acabadas

Dentro do medo e das suspeitas
com a mente agitada e os olhos aterrados,
fundimos e planeamos o que fazer
para evitar o perigo
certo que desta forma horrenda nos ameaça.
No entanto equivocamo-nos, não está esse no caminho;
Falsas eram as mensagens
(ou não as ouvimo, ou não as sentimos bem).
Outra catástrofe cai sobre nós,
e desprevenidos - como teriamos tempo - arrebata-nos.

de Konstandinos Kavafis

Citação # 2

«Nós, os apaixonados, não amamos eternamente»

Rosa Montero

Citação # 1

«O Belo não é mais que a promessa de felicidade»

Stendhal

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Sinfonia das Almas

«Sinfonia de espectros, evocando
na penumbra do além, misteriosos:
Rugem vulcões blasfemos e furiosos,
Coros de virgens brancas vão cantando;
angústias e tragégias, quando em quando,
erguem mais altos gritos dolorosos
e cantos resignados e piedosos
põem na orquestração o gesto brando.
Almas...mais almas...tantas almas! Tantas
que as sigo alucinado, no seu trilho...
mas, entre as Almas puras, Almas santas
do cortejo sem fim, que vai e vai,
eu reconheço Alguém que me diz: - Filho!
e, numa prece, lhe respondo: - Pai!»

de Félix Horta in « 12 Poetas Açorianos»

O Guarda-Rios

É tão dificil guardar um rio
quando ele corre
dentro de nós

de Jorge Sousa Braga in «Os pés Luminosos» (1987)

Existirá sempre em mim 2 versos:

Inscrição

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar


de Sophia de Mello Breyner Andersen in «Livro Sexto» (1962)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A textura mais secreta é o silêncio...

A textura mais secreta é o silêncio e é ele o principal fundamento da
construção invisível. O ser que constrói o seu abrigo torna invulnerável
a sua fragilidade essencial. O subterrâneo conduzirá ao diamante
nocturno do sossego. O seu percurso é uma fuga porque a fuga é uma
força e o desconhecido, na sua viva virgindade, será o supremo ele-
mento de defesa.

de António Ramos Rosa, in «O Aprendiz Secreto».

domingo, 17 de janeiro de 2010

«A lost Cause» (Beck) * * * * * *

«Baby you' re lost, baby you' re lost cause
Baby you' re lost, baby you' re lost cause
I am tired of figthing, I am tired of fighting
I am tired of figthing for a lost cause»




http://www.youtube.com/watch?v=qkNa5xzOe5U

um clássico de Beck

sábado, 16 de janeiro de 2010

Owen Pallett

William Bouguereau



Dante e Virgilio no Inferno, 1850.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Philip Taaffe


Limbus, 2009

Os Pedros e Eu

Os nomes trazem em si o corpo dos sujeitos
Concretos
Configuram uma densa teia inter-alma que
Os une

Os nomes extravasam a mera dimensão do
Eu
Uma Pedra de concreto, uma sombra gelada
Ou um rosto comum.

Quantas são as pedras que beijei
Quantos calhaus verteram meus olhos
Quantos seixos minhas mãos colheram
Foram Pedras
Foram Pedros
Foram Pedras
Foram Pedros

E dividido entre dois mundos
O desejar e o viver
Restou-me apenas Pedras e a memória
Difusa
Clara
Apartada
dos Pedros que se foram.

5 Senhoras e a escrita cuneiforme

Ao Bugatti


Moisés é espanhol!
Atravessou a fronteira sem matrícula.
A escrita cuneiforme
Trazida em seus bolsos, afirmam cinco
Doces senhoras eram apenas sinais.
Que sinais?
Simplesmente sinais de trânsito!
À falta de mar, atravessou o rio
Mais próximo. Diziam umas o Douro
Diziam outras o Guadalquivir.
A distância física é sempre no mapa
Uma mera questão de centímetros e
Centímetros para estas doces senhoras
De peruca à Maria Antonieta é coisa
Que já não importa.
O que importa é Moisés chegar ao café
Aqui, onde me encontro com elas, e dizer-lhes:
«Boa noite minhas senhoras
Posso declamar-vos poemas cuneiformes?»
E olham com seus olhos a pele morena
De Moisés
Que rematará com a frase:
«Tenho dúvidas, muitas dúvidas se
Jesus terá existido».

Com deliciosa barba qualquer senhora
Navega em tais palavras cuneiformes